segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A hora e a vez de Machado de Assis

por Vinícius "Elfo" Rennó

Às quatro horas da madrugada do vigésimo nono dia de setrembro de 1908, há exatamente um século, faleceu aquele que foi e ainda é considerado um dos maiores escritores brasileiros: Machado de Assis. Uns o glorificaram, outros o repudiaram e há aqueles ainda que sequer souberam de sua existência. Ou, pelo menos, não sabiam até este ano, também marcado pelo centenário de nascimento de outro dos grandes das letras nacionais: Guimarães Rosa. Muita coisa foi dita e desdita a respeito das obras de ambos de lá pra cá.

Posso estar enganado, mas mesmo em Minas Gerais, pareceu-me que houve uma tendência a se falar mais do carioca do que do mineiro. Então me pergunto o porquê de haver uma maior comoção pelo Bruxo do Cosme Velho. Seria por conta da linguagem usada pelo autor do "Grande Sertão: Veredas", considerada cheia de obstáculos quase intransponíveis para alguns leitores, pois não encontram ali a língua escrita consagrada? Ou seria, talvez, por causa do fato de o autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ter vivido na então capital do país; um lugar de visibilidade? Não. Cada um usou a linguagem e o ambiente próprios de suas respectivas regiões e épocas para criarem suas histórias, que nem por isso deixam de ter o seu caráter universal. Então, por quê?

Creio que o principal motivo seria que a obra machadiana teve mais de um século para ser lida, relida, criticada, analisada e adaptada para outros gêneros e mídias, como, Cinema e Histórias em Quadrinhos. Ou seja, houve muita produção de mateiral a respeito. Não é que não tenha acontecido o mesmo à obra rosiana, contudo acho que ainda há muito o que se falar sobre esta e ainda não tivemos tempo suficiente para digerí-la por completo.

E, antes que haja qualquer briga, registro aqui meu recado aos dois imortais: Joaquim, não me leva a mal, gosto muito do sabor dos teus escritos - chego até mesmo a imitar-te na forma como preparo os meus -, porém eu prefiro a culinária mineira, com suas palavras bem cozidinhas. E, João, fica triste não, sô. Quem sabe não te darão maior atenção em 2067? quando for o TEU centenário de morte? O jeito é cada um esperar a sua hora e a sua vez.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Vivaldi e a Grande Peregrinação

por Bruno Tardin

Muitas pessoas acreditam que as coisas "ciclam". Assim como a lua tem seu ciclo de quatro etapas, a natureza tem um ciclo próprio, os animais, as plantas, o planeta, tudo, enfim. Mas isso é mais do que óbvio, vocês podem pensar... E é justamente por isso que decidi escrever algo sobre! Geralmente, o óbvio acaba se banalizando, e depois de certo tempo, nem é mais tão óbvio assim...
Como base para este texto, tomei por inspiração parte do grande legado que Mestre Vivaldi deixou-nos: uma de suas produções mais famosas e bem-apreciadas por muitos até hoje. Claro, refiro-me às Quatro Estações, que por questões de gosto pessoal e de conveniência tomei por minha fonte de inspiração. O gosto pessoal é uma resposta auto-explicativa. Já a conveniência, julgo no bom-senso e perícia de meus leitores para que descubram ao longo dessas linhas...
Haverei de seguir uma ordem não tão ortodoxa, com metáforas não tão nacionalistas. Isso porque, como muitos já sabem, os trópicos têm basicamente duas estações. Isso é refletido um pouco no nosso modo de agir. Somos um tanto extremistas em nossas ações e decisões, e somos pra lá de contraditórios em certos pontos do "ciclo". Não digo que todos fazemos isso, pois no próprio país temos regiões com as estações todas bem-definidas e mais ainda apreciadas. Mas este grupo é uma minoria, uma abençoada minoria que toma por constância o seu lema e faz da pessoalidade própria o seu estandarte. É impossível, eu sei, mudar o clima dos trópicos. E, a meu ver, não seria impossível (improvável, talvez, mas não impossível) mudar as pessoas.
Este foi um pequeno prelúdio, meus senhores. Os que me conhecem sabem que gosto de ir roendo-lhes as idéias pelas bordas, tal qual um rato desconfiado de que outro lhe cobiça o queijo (ou um daqueles matutos que sempre caricaturamos). Não hei de demorar-me mais e passarei ao que realmente interessa. Sem mais delongas... À primavera!
Para os que conhecem as obras (citadas acima) de Mestre Vivaldi, estes terão maior facilidade em receber a semente desta laudatória que redijo. A Primavera geralmente é taxada de estação do amor. Talvez não do amor, mas do nascimento. As flores surgem por todos os lados, pássaros festejam a beleza e o frescor da estação, a música flui em cada ponto colorido e resplandecente de vida. A primavera é uma estação que festeja ao sabor de uma valsa cheia de giros e rodopios, uma quebra de cintura e um aproximar-se de colos. Tudo é festa, a alegria é a ordem primeira. E no orvalho que beija cada flor a despertar, encontram-se vestígios de sonhos de paz e juras enamoradas.
Mas devemos lembrar também que outro ciclo existe dentro da própria primavera. O do dia – e da noite. E Mestre Vivaldi parece ter percebido este fenômeno com certa presteza e olhos de um sábio. As noites de primavera têm um quê de soluçar – sim, soluçar – tal qual a mulher que, vendo que chega a hora de separar-se de seu amor, agarra-lhe firme os braços e deseja que o tempo pare, e com isso venha a imortalidade daquela maravilhosa sensação... Mas, na primavera, este momento fúnebre e um tanto quanto melancólico, regido pelo soluçar do pobre rouxinol por um sonho perdido, dura pouco. Lá vem a manhã, com seus primeiros raios frescos e o orvalho que uma última vez beija suavemente as maçãs da terra. E toda a festa vai lentamente recomeçando, os ânimos voltam a se encher de merecido júbilo, e a cada minuto o baile da primavera recomeça seu próprio ciclo.
Nós também sofremos da mesma maleita que acomete a primavera. Nossa alma sofre de certa inconstância, oscilando entre um momento que beira o sublime e o leve chorar de uma criança que, tendo se perdido dos pais por um breve instante, crê piamente que aquele momento há de tornar-se eterno dentro de seu próprio sofrimento. Somos extremistas por natureza. Tal qual os discípulos de Jesus, com especial atenção para o bom e velho Pedro, que se num momento dizia que daria a vida por seu mestre, num súbito de paixão e devoção, no outro nega o alvo de suas afeições com certa frieza e distância. Somos facilmente iludidos pelo muito belo e rapidamente caímos nas sombras do muito lânguido. Uma hora nós estamos tirando mercadores do templo, na outra cochilamos enquanto Jesus chora suas emoções no que, sem sombra de dúvida, fora a maior e mais tocante melodia muda que este mundo já teve a audácia de presenciar.
Mas não temam, senhores: para aqueles que sabem onde olhar, o orvalho da noite e o canto da coruja são um mero piscar se comparadas à alegria vivida com a visita da aurora. Nossa alma, por mais que inconstante, almeja âncora segura que lhe garanta a felicidade. Os que confiam no Senhor são como as flores que, se encolhidas e temerosas durante a friagem da noite, revivem e reanimam ao primeiro saudar do sol.
Logo em seguida, o Verão: estação marcante, quente, sobejada com vapores noturnos e chuvas mais fortes. Quando o sol realmente mostra a vastidão de seu domínio e poderes sobre as criaturas que rastejam abaixo de si. Mas o verão não é um jugo, tampouco algo ruim. O verão é uma queima de fogos, é paixão ardente, é o "Eu te amo" pronunciado à donzela que passa na distância, é o olhar confiante para o horizonte que desejamos com nossas mãos e invejamos com nossa alma. É uma xícara de café quente na varanda, é um beijo roubado, é alegria febril, um lampejo de genialidade que passa pelos olhos e deixa um rastro de lágrimas de orgulho e surpresa.
Mas, como eu disse, o verão também traz suas chuvas. Suas noites, ao contrário da primavera, são tão fogosas e intensas quando as manhãs. Os calores que o sol lança sobre a terra duram enquanto a estação durar. Mas as chuvas têm um poder de neutralizá-lo, suprimi-lo e drenar os frutos de seu labor passionatto. Um momento gélido, um tremer de ossos, um olhar triste para as plúmbeas nuvens que se estendem ao infinito, roubando de nós o horizonte tão desejado. Nossa alma chora juntamente com as nuvens. Nosso espírito escurece tal qual o firmamento sobre nós. Nosso coração se silencia ante a sonata dos pingos de chuva.
O verão é uma estação de amadurecimento. Tanto por coisas boas, quanto pelas não-agradáveis, e estas são as que mais deixam marcas. Todo aprendizado requer sofrimento, todo sofrimento é um educador nato (com melhor didática do que a felicidade, quer queiram, quer não). E, para Mestre Vivaldi, as gotas de chuva acabam durando mais do que a escuridão primaveril, e são as arautas de tão áurea estação. "O verão é prenunciado por tempestades", ensina-nos sua música. Tal qual outro mestre, deveras anterior a este: Saulo, que depois das tempestades pela qual peregrinava, e depois de vislumbrar o sol de verão que era a presença de Deus em Jesus, o horizonte que o homem procurava com um misto de fúria e curiosidade. A cegueira de Saulo (que teria seu nome alterado para Paulo) foi o epílogo das tormentas de seu espírito. O sol raiou-lhe com tanta força que, por breves momentos, roubou-lhe a visão. E nunca mais deixou-o sob a chuva novamente. Breves nuvens eventualmente cobririam o sol, isso é fato. Mas ele sempre estaria lá, alumiando e guiando os passos vacilantes e desconfiados daquele que seria um dos mais renomados defensores e amantes (no sentido literal da palavra) do cristianismo.
Muitos não notam, mas o verão carrega uma nota de imperiosa urgência e subliminar angústia. Não por causa de suas tormentas, elas entristecem e obscurecem, mas não são tão discretas e sugestivas assim. O verão carrega consigo uma marca de funesta preocupação, tal qual nós próprios. Passou-se a primavera e suas delícias. Passa o verão e sua tempestuosa maré de emoções fortes e explosivas. E aproxima-se aquela que é mensageira de futuros temores e agruras.
Nós temos uma facilidade tremenda por nos deixarmos levar, como se estivéssemos bêbados da aura de verão. Somos tempestuosos e intensos, e geralmente nos rendemos facilmente às tempestades da vida. Mestre Vivaldi desconfiava deste lado enérgico da natureza humana, e não foi à toa que construiu seu "Verão" da maneira que o fez. Uma marcha rumo ao horizonte, uma paliçada de tormentas no caminho. E o hálito morno e assustadoramente próximo das estações que ainda restam... Se você entende o que eu digo, entende também a melodia a que me refiro. E com ela se identifica... O verão, senhores, termina numa nota arrastada e grave.
Ao contrário do que muitos pensam, o Outono é extremamente agitado. Ao menos, inicialmente. As folhas das árvores, coradas de tanto amar ao longo de duas estações, rendem-se ao seu lânguido descanso e traçam uma última valsa do galho de suas moradas até o chão que esfria lenta e mortalmente. As árvores despem de sua lustrosa roupagem e encarnam os camponeses do velho mundo: simples, desnudos e sem muito atrativo. Os pássaros voam para longe, e os que assim não agem preparam-se para em breve fazê-lo. Os frutos atravessam as últimas etapas de seu amadurecimento e esperam ansiosos por mão que os colha.
E então, o vento: o ressonar das almas que minguaram entre o verão e a atual estação, um prelúdio assustadoramente próximo de uma noite que será mais longa e marcante que o dia. Mesmo sendo interrompida, ela deixará presença. As noites do Outono de Mestre Vivaldi também eram mais longas e marcantes, recortadas pela valsa das folhas que caíam durante o dia. E o frio se aproximando, como as asas da morte fazem quando sentem um espírito que evanesce. O calor também evanesce, a beleza, tudo o mais que era belo e apetecível.
De acordo com o Dalai Lama, outro grande Mestre em sua própria arte (a arte de moldar espíritos de homens): "Uma árvore em flor fica despida no outono. A beleza transforma-se em feiúra, a juventude em velhice e o erro em virtude. Nada fica sempre igual e nada existe realmente. Portanto, as aparências e o vazio existem simultaneamente". Não poderia ter dito melhor, verbalizando em palavras o que Mestre Vivaldi dissera com acordes. O outono é uma estação de lenta degradação da beleza, da juventude, da superficialidade. Mas os frutos maturam. Tal qual certo jovem que também teve seu nome trocado no momento final de sua metamorfose: ao sair da pupa, após ter batalhado com seus próprios sonhos (e saído vitorioso, ainda que escoriado), Jacó mudou para Israel, nome que seria imortalizado futuramente.
E depois de muito tempo de longo e merecido modelamento, depois que suas folhas de ignomínia e esnobe superioridade caíram todas por terra, restaram somente os frutos de sabedoria e autocontrole, de reconciliação e amor verdadeiro. E assim ele transpôs o Vau de Jaboque acompanhado das últimas notas que futuramente Mestre Vivaldi comporia, uma última despedida das folhas rubras como sangue e ariscas como cervos numa campina. Um despedir-se destes raios mornos do sol e deste frescor agradável da brisa de outono, os últimos tons de febril complacência se despendem num evanescente crepúsculo.
Nós somos uma árvore no outono, a estação de maturamento. Somos constantemente trabalhados, constantemente desenvolvidos, até que chega o momento em que o excesso deve partir, e devemos provar dos frutos que de nós vieram. Devemos nos preparar, pois num dado momento do ciclo de nossas vidas (tal qual no ciclo das estações) muito do que julgávamos belo e prazeroso cairá por terra, e teremos somente consigo o que de nós brotou.
E então, o fim. As brancas lágrimas que o céu lança sobre nossos corações são a abertura desta ópera que, futuramente, mostrará ser tocante tragédia grega. A música de Mestre Vivaldi para esta estação parece bailar ao longo da neve que cai do céu. Tudo cai em sonolência inerte, tudo adormece. A neve cobre a tudo como gélida mortalha. Nossos espíritos são ofuscados com as brumas geladas, nossos corações entram em vagarosa sintonia com a aura moribunda que esta estação traz. Mas o Inverno não tem nada de mórbido, ou triste, pelo contrário. Mestre Vivaldi também assim pensava, pois sua melodia só começa vagarosa e triste, e evolui para algo que poderia ser comparado somente às crianças que brincam numa rua e, ao pôr-do-sol, adormecem embaladas por cobertas e amor de mãe.
Hayley Westenra canta a beleza e a real intenção do inverno em sua música "River of Dreams", inspirada e adaptada da melodia original de Mestre Vivaldi. Transcrevo aqui somente a tradução do trecho que notadamente resume aquilo que eu tento escrever, e que aquele que compôs minha musa inspiradora conta em acordes, feitos nos tempos de outrora:
"Rio dos sonhos, leve-me com você esta noite
Deitada em seus braços seguimos à deriva
Para ilhas da imaginação que brilham e fulguram
Sob as estrelas
Enquanto deslizamos através das trevas
Para o coração da noite".
O inverno é o tapete carmesim que nos prepara e purifica através da mortificação lenta e gradativa para o renascer que teremos quando, à medida que a neve descobre e revela nossa nova forma, reavivamos ante o chamado da Primavera.
Nós, enquanto filhos do Deus vivo, somos os peregrinos das quatro estações, perscrutadores do legado de Mestre Vivaldi. Somos uma profusão de primaveras e verões e outonos e invernos a rodopiar no caldeirão de nossas almas, uma aberração da natureza e uma obra única e tão bela e bem trabalhada que beira a plenitude do divino (o mesmo que nos forjou de seu amor e alegria). E temos como último inverno, um terrível e amargo inverno, as etapas finais de nossa vida nesta terra, esperando que a salvação do Deus Altíssimo venha despertar em nós uma primavera perfeita e infinita, onde não será necessária a tempestuosa fúria educadora do verão nem a metamorfose fria e destruidora do outono. O sangue que Cristo verteu no madeiro é a rosa que abre festiva na primavera, é o sol a brilhar no verão, e é o carmesim a derrubar as folhas do outono. E seu retorno triunfal há de ser precedido pela última lágrima gelada a ser velada por este mundo...
A marcha das estações... Ou melhor, a nossa marcha pelas estações de nossas vidas... Vivenciando, sorvendo, se deleitando, sofrendo, e aprendendo, sempre aprendendo e crescendo, sempre, como um carvalho que almeja roçar as alturas... Tendo por promessa os palácios das sendas celestiais, apoiados pelo legado do Messias e daqueles que foram tocados pelas mãos do Pai... E sempre valsando ao ritmo da orquestra de Mestre Vivaldi. Peregrinamos rumo à primavera eterna na qual nossas almas vão, enfim, conhecer por inteiro aquilo que só viam em parte. A maturação de nosso espírito através da foice da morte, que arranca as folhas secas de nosso corpo e purifica-nos para, puros e sem mácula, retornarmos aos campos floridos do jardim onde primavera, verão, outono e inverno tornam-se uma única estação... Que ecoa e ressona de acordo com o coração daquele que tudo criou. A estação da suprema graça de Deus.