quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

As veredas do Grande Sertão



Grande Sertão: Veredas tem uma história além de suas páginas, pra mim. Comecei a lê-lo no fim de 2008, e em janeiro de 2009 fiz uma viagem de uma semana e não quis levá-lo comigo, para não danificar. Quando voltei, não o terminei, mesmo estando pra lá da metade. Mas fiz bem. Pois sua leitura tem que ser algo fluído, contínuo, como o sempre ir do rio, assim podemos de verdade nos enamorar pelo seu enredo. Voltei a lê-lo neste ano, 2014, aproveitando meu grande tempo de férias. Agora sim, li direto, com no máximo um dia de intervalo. E o que digo é que terminei o livro com muitas lágrimas desde sua décima página final. Pra mim, hoje, fez muito mais sentido que há anos poderia fazer. Pois já conheci alguns lugares que estão no livro. Já cruzei o velho Chico e me imaginei na canoa de Riobaldo e Diadorim quando pequenos, também na sua travessia. Já comi algumas das comidas da história e principalmente já senti os jeitos da gente sertaneja, dos gerais, da caatinga e dos barrancos...

"Rio-Livre", desenho de Vinícius Rennó

Bem, o autor pede em nota no livro, para quem já o tiver lido ou for escrever sobre o mesmo, que não fale sobre a ordem do enredo, pra não estragar para outros leitores a grande surpresa que ele reserva em seu final. (Será no final?) Respeitando isso, o que vou escrever aqui é mais sobre o sentimento que o livro pode nos trazer. Pra mim é uma obra completa. Está entre meus livros preferidos. E não só livros, mas entre qualquer outra obra humana preferida, incluindo comida. Por isso mesmo o prazer desse livro se assemelha a um bom feijão tropeiro. É uma comida simples, sertaneja, mas é completa, tem tudo o que você precisa: poesia, natureza, amizade, liberdade, diversão, amor, filosofia, superação...

Lendo esse livro a gente se depara com uma poesia fina. Ela está nas palavras inventadas por Guimarães Rosa e na própria ordem com que ele as ajeita nas frases. À primeira vista a sua leitura é estranha. Dizem que é um filtro dos leitores mais persistentes: “É preciso ter coragem!”. Mas logo nos acostumamos e vamos tomando parte da singela poesia desta obra prima. Como diz Manoel de Barros, poesia não é pra se entender, é pra se sentir.

A natureza no livro, como diz um grande amigo meu, Joubert dos Santos, é uma personagem do enredo. Ela ganha vida pelo olhar de Riobaldo e interage com ele. Rosa faz comparações e analogias com a natureza para tudo. Assim, em momentos de grande prazer e relaxamento, os pássaros lindos desse sertão gerais tomam conta dos olhos, ouvidos e coração de Riobaldo e de nós, seus acompanhantes. Assim como nos momentos sombrios, são as corujas, por exemplo, que aparecem. Não só os pássaros, as grandiosas árvores, as veredas, os rios... Tudo faz parte dessas páginas maravilhosas. E no meio do sertão nos projetamos rapidamente, mesmo que você nunca tenha pisado em semelhantes terras. “O sertão está na gente!” É a sensação que prevalece.

Acho que nos apaixonamos por Riobaldo pelo nível de sinceridade com que ele conversa com a gente. Pra nós ele é um todo transparente. Mergulhamos na sua vereda de ódio, de amor, de dúvida. Questionamo-nos com ele sobre os valores da amizade, do bem e do mal, de Deus e do demo, da existência ou não do destino. Percebemos que a vida é imensa e sempre tem algum segredinho, alguma surpresa que necessitamos ainda de descobrir, por nós mesmos, com nossas pernas. Ele nos encoraja a isso:
“Vento que vem de toda parte. Dando no meu corpo, aquele ar me falou em gritos de liberdade. Mas liberdade - aposto - ainda é só alegria de um pobre caminhozinho, no dentro do ferro de grandes prisões. Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer.”

Vale dizer que tudo isso contado é requintado pelo grande humor de Guimarães Rosa. Há várias passagens divertidas. Jeitos de falar engraçados, causos e anedotas. Tem de tudo! É uma escrita alegre, de pazes com a vida. E por isso que faz tão bem. É muito divertido o conflito que Riobaldo tem com o demo, o Sisudo, o sempre sério, o Cujo, não sabendo se vendeu ou não a ele sua alma nas Veredas-mortas. Como se pode ter dúvida ou acreditar nisso? Ou então as repetidas vezes que Riobaldo define o viver: é ou não é muito perigoso. É? Não é? Ou com as diversas definições do demo e do sertão. É um eterno cutucar de espírito que Rosa propõe. Uma reflexão sobre a vida, sobre nossos valores, sobre os paradoxos e intolerâncias e sobre nosso humor, nossa gana de viver.

Enfim, deixo convite a conhecermos essa obra clássica da literatura brasileira. Sua história é simples, está no imaginário popular, mas o que vale é a travessia, não a chegada. Garanto que terão grandes surpresas e prazeres com esse livro tropeiro!
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. Será?”


Esta postagem foi adaptada de um texto gentilmente cedido pela autora. Leia o original no blogue Bobeira Onírica.