domingo, 17 de agosto de 2008

Páprica

por Bruno Tardin

Na maioria das vezes, as metáforas mais esquisitas são as mais verdadeiras. Obviamente, não procuro, através deste ditado tão estranho quanto obscuro, escusar (ou até mesmo justificar) o que vou escrever. Não, caro leitor, não pretendo isso: só tomei a frase como um bom prólogo para esta pequena crônica.
Em se falando de metáforas, aqui vai a minha (esta pequena semente que planto nos corações dos meus leitores queridos, e que gostaria de vê-la frutificar algum dia): o mundo, meus caros, é uma grande e suntuosa cozinha.
Explico-me: todas as estruturas, recôncavos e membros da sociedade moderna como nós a conhecemos, todos tem um papel análogo a certos componentes básicos em uma cozinha. Existem aqueles que são panelas, talvez não tão atrativos à primeira vista, nem tão bem tratados, mas vitais para o processo de amadurecimento e preparação do alimento. Podes crer, leitor, que este gênero de indivíduo não seja tão importante assim: tente comer um belo pernil cru, ou uma boa porção de arroz, sem que este tenha passado pelo milagre da fervura em água, e você entenderá o que digo.
Existem também aqueles que estão situados na área de limpeza: palhas de aço, detergentes, uma boa barra de sabão (aquele feito com gordura e outros componentes menos célebres, todos depois de muito tempo de diálogo em uma panela fervente)… Um gênero tanto obscuro quanto necessário: ninguém gosta de limpar a sujeira dos outros (e uso aqui o sentido literal de “sujeira”), mas é um trabalho necessário e alguém tem de fazê-lo.
Poderia demorar-me muito mais em outros vários gêneros, mas deixo este trabalho saboroso para algum outro irmão de penas (ainda que esteja digitando este texto, mas tudo bem…). O gênero que pretendo retratar aqui é aquele que, usualmente, só vê a luz do dia durante a salada, e algumas vezes durante os preparativos das refeições: temperos.
Creio que não é necessário demorar-me para explicar a importância deste conjunto diminuto em estatura e gigantesco em importância; tente imaginar sua vida, toda a sua arrastada existência, leitor, sem uma pitadinha de sal. Não, não estou fazendo graça dos hipertensos: tenho é muita pena deles, pois uma das maiores dádivas lhes foi consequentemente negada (que me perdoem os médicos, mas isto é verdade).
Mas há ainda uma subdivisão no reino dos temperos, que deve ser explicada: os temperos vitais e as salsinhas. Tomem por “salsinha” a classificação de mestre Veríssimo, de que isto seria todo e qualquer componente presente na comida com efeito puramente ilustrativo: desde a literal salsinha presente em alguns pratos frios, até aquele brotinho de canela coroando os doces de festa.
Até mesmo as salsinhas têm sua utilidade: apesar de não serem temperos consideravelmente marcantes, são uma espécie de “merchandising” para os alimentos nos quais se encontram. Uma função não menos nobre que invejável, já que são elas que irão garantir uma boa propaganda do produto que vendem. Contudo, não é este o grupo que mais me agrada, e tampouco terá ele aqui futuras dissertações.
Os temperos vitais, como o próprio nome nos faz o favor de dizer, são de extrema importância: dão um toque extra ao sabor, uma coloração mais viva e divertida, às vezes… Enfim, enriquecem a própria alma do alimento. E, como o próprio Messias nos diz através das Santas Escrituras, nós devemos ser o sal da terra. Obviamente, ignoro qualquer sentido literalmente agrário que a citação possa ter.
Saindo do campo metafórico e passando ao ideal platônico (resumindo, trocando em miúdos tudo isso aí): nosso papel, querido leitor, não é somente ficarmos guardados num frasquinho de vidro temperando as saladas e porções de comida servidas vez ou outra. Se pudesse, faria uma adição às palavras de Jesus, mesmo que o termo por ele usado fosse simples o bastante para ser entendido à sua própria época: sejamos o sal, a pimenta-do-reino, a mostarda (a boa e velha mostarda, amiga de outras parábolas), a noz-moscada, enfim, sejamos o tempero da terra.
Devemos nos valer de nossas propriedades “temperísticas” e dar um pouco mais de sabor a este mundo cinza e sem graça no qual vivemos. Outra grande lição que podemos ministrar: paciência. Afinal, quem já ouviu falar de um grande cozinheiro que temperasse seus pratos visando algum recorde bizarro no Guiness? O bom tempero leva tempo e concentração para fazer efeito, leitor: por isso mesmo é que você, pequena páprica, deve ter paciência. Os frutos de seu labor só serão percebidos durante o processo de degustação. Mas tome cuidado: a nossa missão pode acabar sendo uma verdadeira espada de dois gumes.
Não é à toa que inventaram o adjetivo “temperança” (e naturalmente, com ele seu análogo, “intemperança”): equilibrar, colocar sobre limites. Afinal, em ausência, nosso trabalho é praticamente inútil (os hipertensos que o digam). Mas em excesso… Bom, basta imaginar o que seria aquela feijoada feita por uma cozinheira que pesou a mão na hora de salgar os componentes porcinos, ou então aquela avó ditosa que, por puro descuido, usa um pouco mais de pimenta do que o necessário em suas criações culinárias. Nós devemos ser temperados, se quisermos também temperar. Pode parecer fácil, mas tente ser “somente o necessário” num mundo materialista e tresloucadamente individualista como o nosso, e você vai ver que as coisas não são tão doces como você queria…
Falta-me espaço e sobram-me idéias, por isso hei de dar cabo desta pequena cria de meus miolos sem mais delongas: sejam o tempero da terra, meus amigos. Sejam moderados e equilibrados, mas tenham certeza de que essa humilde participação em nossa sociedade realmente faça a diferença. Dêem mais cor, dêem mais sabor, dêem um cheiro melhor nas pessoas cruas e sem tempero deste mundo (esta é também uma deixa para as pessoas-panelas, das quais falei anteriormente). Lembrem-se de que, por mais que seus esforços possam parecer inúteis a vocês próprios, sua utilidade não é para vocês mesmos, mas sim para os outros. E de que, se tudo o mais parecer inútil, nós estamos sendo usados por um grande, sábio e todo-poderoso cozinheiro, que sabe muito bem o que faz (afinal, não se pode ensinar um chef de renome como fazer uma omelete).
Confiem nestas mãos ditosas e experientes que nos usam, leitor, e tenha fé em sua própria capacidade: afinal, os temperos não são somente para enfeitar a mesa das saladas. Sejamos temperados e temperamo-nos uns aos outros, para que nosso eterno junta-panelas de domingo (que é a vida em sociedade) seja mais do que uma gororoba qualquer. Sejamos diferentes, e façamos a diferença. Pápricas de todo mundo, uni-vos!

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